As Águas de Março

Muito se tem ouvido falar sobre enchentes, inundações, desmoronamentos e outras calamidades próprias desta época do ano. São as águas de março fechando o verão.

Dentre esses muitos, encontramos os profissionais da política demagógica que se utilizam da desgraça alheia para a sua auto-promoção. Falam eles de "piscinões", de calha do rio, impermeabilidade do solo e se utilizam de outros jargões técnicos que impressionam muito os incautos eleitores.

A impressão que se tem ao ouvi-los é que todos foram tomados, repentinamente, de uma extraordinária competência e que as soluções por eles apregoadas serão aquelas que, de forma definitiva, irão resolver os problemas desta tão sofrida metrópole.

Quais são as "soluções" que, efetivamente, contribuem para a solução do problema das enchentes em São Paulo? Em quem devemos confiar? Em quem devemos votar?

Para compreendermos as razões que levam a natureza a nos castigar bombardeando-nos com descargas elétricas de altíssima voltagem e baciadas concentradas de água fria, vamos analisar o problema sob a ótica de cada fenômeno que contribui para o sucesso da empreitada.

10 Fenômeno: Ciclo Hidrólógico.

Todos sabem, pois aprenderam quando freqüentaram o 10 ano do ginásio, que existe um ciclo conhecido como Ciclo Hidrológico.

A superfície de nosso planeta é composta, em mais de 75% de água. A energia do sol, incidindo na água, provoca a sua evaporação. Surgem as nuvens. Os ventos levam as nuvens para o continente.

O sol incidindo sobre a terra aumenta a temperatura do solo e esta, por sua vez, dá origem às correntes ascendentes. As correntes ascendentes levam as nuvens a alturas onde a temperatura é muito baixa e que provocam a condensação das nuvens. Quando a corrente ascendente é muito forte, provoca o congelamento das partículas.

As partículas condensadas caem na forma de gotas de chuva.

Em regiões de florestas, boa parte da energia do sol é absorvida pela vegetação e somente uma pequena parte é transformada em calor. Consequentemente a corrente ascendente é fraca. A chuva é fraca.

Em regiões sem florestas, como nos desertos, o solo a rocha ou a areia não absorve a energia solar e quase toda a energia é transformada em calor. Consequentemente a corrente ascendente é muito forte. A chuva é muito forte.

20 Fenômeno: São Paulo é um Deserto.

Houve época que nossa cidade era conhecida como "São Paulo da Garoa". Que saudade daquela época em que a cidade era uma minúscula concentração de pessoas e prédios encravada dentro da Mata Atlântica, a floresta exuberante que comandava o clima tipicamente tropical com alta pluviosidade e distribuição uniforme de chuvas.

A floresta "já era", isto é, já não existe mais. Quando as ONGs pró Mata Atlântica anunciam que a floresta ficou reduzida a apenas 2% do que era, somos levados a enxergar somente o que sobrou da floresta. Na verdade, deveríamos ver a "floresta" que surgiu no lugar da Mata Atlântica.

A cidade de São Paulo apresenta, atualmente, muito pouca diferença com o Deserto de Saara. Talvez uma dessas poucas diferenças é que lá no Saara, a areia está solta e fica ao sabor dos ventos e formam as tempestades de areia. Em São Paulo a areia, talvez para não perturbar as pessoas, ficam grudadas na forma de blocos denominados "concreto", firmes para que o vento não as carreguem. Quando você tiver a oportunidade de realizar um sobrevôo sobre a cidade verá que, eliminando as formas dos prédios, São Paulo é como se fosse um imenso deserto: Areia, areia e mais areia.

O clima de São Paulo é um clima de deserto. Isto significa que a distribuição das chuvas, como a distribuição de renda, não é uniforme. Há períodos de estiagem quando reina a seca absoluta e há períodos de chuva intensa com a ocorrência de trombas d’água. A ausência de um moderador, como uma floresta, é que acentua essa desigualdade na distribuição de chuvas. O intenso desmatamento que se verifica atualmente na serra da Cantareira e na serra do Mar ao redor da represa Bilings, acentua a tendência de concentração das chuvas, isto é, as chuvas se tornarão cada vez mais concentradas e cada vez mais fará desaguar mais água, cada vez em menor tempo.

30 Fenômeno: O rio possui seus próprios caprichos.

Outro fenômeno desconhecido, e portanto desrespeitado, é que o rio possui seus próprios caprichos.

Muitos pensam que as águas "deslizam" suavemente pelo leito do rio. Entretanto, quando focalizamos as gotículas verificamos que se trava um turbilhão com partículas movimentando-se em todas as direções.

Existe, no mundo, "rios novos" e "rios velhos". O rio novo é jovem, impetuoso, briguento. Se você colocar um anteparo em sua trajetória ele vai destruí-lo. Se você tentar desviá-lo ele volta para a sua própria trajetória. O rio Colorado nos Estados Unidos é um exemplo típico desse comportamento. Formou e continua a formar o Gran Canion.

Ao contrário do novo, o "rio velho" quer descansar, quer parar. Ele faz um longo e caprichado meandro e se cavarmos uma vala para encurtar o caminho, ele assoreia a vala, refaz o meandro e aproveita para fazer um meandro mais longo ainda.

O rio Tietê, que em tupi significa "O Grande Rio", é um caso típico de rio velho. Ele parece o bom velhinho e tem uma vontade muito grande de "parar", de descansar e se aproveita de todas as obras executadas pelos humanos para "dar uma paradinha". Diminuindo a velocidade, ele cria condições para o assoreamento. Toneladas e mais toneladas de areia, barro e lixo que vinham sendo carregadas pela enxurrada são depositadas em seu leito logo que a velocidade diminui.

As obras que alargam ou aprofundam a calha do rio criam condições favoráveis para o rio diminuir a sua velocidade. Parando ele enche e cria a enchente que invade as casas e destroi as propriedades, tanto públicas como privadas.

 

Análises possíveis: Hidráulica ou Hidrologia?

A partir desses dados, que tipo de análise é possível se desenvolver?

A essência dos projetos, que pretendem solucionar o problema das enchentes em São Paulo, deve levar em consideração que a cidade de São Paulo é um enorme buraco encravado no meio de duas grandes muralhas de difícil transposição que é a Serra do Mar e a Serra da Cantareira.

A água que entra por tudo quanto é lado, principalmente o de cima deve ser rapidamente removida. Devemos criar condições para que as águas saiam logo de São Paulo. "Sai da frente que atrás vem gente".

Alargamento, aprofundamento e piscinões apenas retardam a saída das águas. São necessárias obras que aumentem a velocidade de escoamento dos rios, como aquelas que foram executadas no rio Tamanduateí. Muitos ainda se lembram quando, em qualquer chuvinha, ocorriam enchentes no vale do Glicério? Pois é, a forma que foi dada ao canal do rio e o material que foi empregado no seu revestimento deram condições para que o rio navegasse com maior velocidade adquirindo uma certa impetuosidade. Na sua foz, o rio Tamanduateí possui o leito cerca de 2 metros abaixo do leito do rio Tietê e não teria condições de "entrar" no rio Tietê. Entretanto a grande inércia das águas, adquirida pelo aumento da velocidade de escoamento, permite que o rio Tamanduatei "suba" no rio Tietê.

Soluções existem e não necessariamente custam caro. Devemos sim, como cidadãos conscientes, exigir das autoridades governamentais, sejam elas municipais, estaduais ou federais, uma postura de maior responsabilidade e de respeito aos contribuintes. Os estudos e projetos devem ser encomendados a técnicos competentes que tenham condições de analisar o problema de forma ampla e abrangente e não apenas soluções pontuais que apenas solucionam a questão imediatista do voto.

Lembrando Elis Regina: "São as águas de março fechando o verão". Tomara que sejam promessas de vida em nossos corações.

São Paulo, 29 de fevereiro de 2.000

Engº Roberto Massaru Watanabe

A matéria acima foi publicada na íntegrana nos semanários Gazeta do Tatuapé, Tatuapé News e Gazeta da Zona Leste da edição do dia 2 de abril de 2.000. (Exemplares podem ser solicitados pelo telefone (011) 6198-6700.

O autor é formado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Possui especialização em Habitação, Infra-estrutura urbana, e Hidrologia.

Participou do projeto das grandes obras da engenharia nacional como a rodovia dos Imigrantes, sistema Cantareira de abastecimento de água e o emissário submarino de Santos.

Participou, em 1969, da primeira simulação, por modelo estocástico, do comportamento da bacia do Alto Tietê.

Não estamos sozinhos:

Loteamento clandestino na Serra da Cantareira, foto publicada no jornal Folha de São Paulo do dia 17/12/2000.
Observe como a destruição, embora lenta e progressiva, é irreversível. Estamos pouco a pouco invadindo e a natureza está perdendo essa batalha.
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Veja que belo "DESERTO". A mutação do clima é radical. A floresta tropical com as chuvas bem distribuídas ao longo do ano foi transformada em deserto tropical com chuvas altamente concentradas. Isso que você vê na foto abaixo é um "deserto": Não há absorção de energia pois ela é totalmente refletida na forma de calor e não há evaporação. Então, quando a chuva vier será grossa e torrencial.

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http://www.futurasgeracoes.com.br/htm/aguasmarco.htm     
http://www.unicid.br/imprensa/gazeta_tatuape02.htm  
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[11796] - ET6/www/roberto/rotary/TexztoAguas.htm em 16/03/2002, atualizado em 16/11/2003